domingo, 19 de agosto de 2007

A felicidade a dois centavos

De repente, aconteceu a chegada deste objeto quase extinto, por culpa das modernidades e avanços tecnológicos: uma carta. Veio num final de tarde, enquanto eu tentava resolver algo por telefone, uma dessas nebulosas da vida. Daqui do primeiro andar, vi o carteiro, com sua imensa sacola, colocar o envelope em cima do muro, enfrentando os latidos desesperados de Bambam, nosso vira-lata mais querido. Não sei qual a cisma espiritual e metafísica de Bambam, que fica possesso quando vê alguém da Compesa, Celpe ou dos Correios. Ele, definitivamente, não suporta gente fardada. Se vier por aqui, amigo, venha a paisano, para evitar mordidas na canela.

A carta é de minha tia Teresa, irmã do meu pai, o José Vicente. Surpreso, eu não sabia que o nome dela é Terezinha de Lisieux Oliveira Mapurunga. Uai, tem um “Lisieux” na família? É a nossa vertente francesa? Por isso sou tão amigo da Emilia, que é francesa. É vocação familiar.

Outra surpresa: a carta veio sob a alcunha de “Carta Social”, e custou a quantia ínfima de dois centavos. Sim, amigos, dois reles, magricelas centavos. Não sei nem o que uma pessoa pode comprar com dois centavos. Pode não comprar nada, nem meio chiclete, mas pode mandar uma carta de três páginas para um amigo em outro estado, ou para um sobrinho, que foi o caso. Dois centavos, o preço de fazer alguém feliz.

A carta veio depois de uma visita à tia, em Fortaleza. Ela andou adoentada, um problema na perna, mas nem foi por isso que fui visitá-la, depois de tantos anos. É que estou num processo civilizatório interior, tentando resgatar o quebra-cabeça familiar, que deixei para trás, depois que resolvi sair andando pelo mundo, há vinte anos. Na última viagem a Fortaleza, fui ter com o velho e bom tio Ademar, o primo Sergei, a tia Teresa, e fui esbarrando na história da minha família.

A dona Terezinha de Lisieux me escreve em folhas amarelas, reciclando material de algum bloco do setor de “comunicação interna” da Prefeitura de Fortaleza, que não tem nada a ver com a história. Conta dos problemas de saúde, e diz que fica impressionada com essa minha paixão de contar histórias. Diz que perturba seu coração ver as riquezas do Brasil cada vez mais centralizadas. “Sei do pouco meu”, conta, e acho isso comovente. A gente precisa às vezes saber do pouco da gente, para enfrentar o mundo sem tanto exagero.

A tia é daquelas criaturas que acreditam nos “milagres diários”, então me sinto em casa, e sei que trocaremos muitas cartas de dois centavos. Depois, afirma que vale a pena “enlouquecer sempre”, e diz que eu seria o primeiro do bloco. Acredita que eu driblo o viver, que salto muros para ver o outro lado. Acho que a tia gosta muito de mim, e desanda a me colocar num lugar mais bonito.

Estou aqui, relendo sua carta para escrever esta cronicazinha de início de semana, numa noite chuvosa no Cabo. Ela diz que outro dia fechou os olhos por um instante, e teve vontade de chorar, com saudade dos que estão longe. Então, pelos dois centavos da sua carta, fizemos uma comunhão de sentimentos.

Fico sabendo que Sebastião, seu papagaio, fugiu três vezes, e na última, o camarada não foi encontrado. Se algum leitor de Fortaleza encontrar um papagaio que atende pelo nome de Sebastião, favor entrar em contato comigo, que acionarei o sistema de resgate. Isso é muito importante para a dona Tereza Lisieux Mapurunga. Logo, é para mim também.

Ela prometeu falar das “peripécias próprias da caduquice”, alguns fatos “extraordinários e inéditos”, e já fico na expectativa.

Acabei de responder a missiva, na minha velha Olivetti. No envelope, coloquei também “Carta Social”.

Espero que meus centavos também a façam feliz. São poucos, mas vão cheios de afeto, esse afeto pueril de um sobrinho que também acredita nesses milagres diários da existência.

16 comentários:

katherine funke disse...

a tua tia é uma poetisa. o que ela te disse vale OURO, não dois centavos.

correspondi-me por anos com uma tia 40 anos mais velha que eu. foi uma experiência fantástica. e quando ela ficou doente as cartas foram rareando, me preparando para o dia em que elas realmente pararam de chegar para sempre.

por isso fiquei comovida com teu texto.

cheguei aqui por meio do fotoblog do lin e fiquei feliz com o que encontrei. espero que a gente possa trocar umas idéias também.

Anônimo disse...

carta social?
adorei isso.
vou imediatamente pegar um caderno inteiro e umas duas canetas para enviar minha alma pelo correio por dois centavos a alguns endereços importantes...
un petit bisou pour toi

Anônimo disse...

sama,
amei! Mais ainda o "enlouquecer sempre" e os "milagres diários da existência" no "processo civilizatório interior".
Beijo.

Anônimo disse...

Sama,

Gostei do texto. Mas o que interessa mesmo é outra coisa. Tu queres trocar o galo do teu vizinho por aquele grilo do meu vizinho?

Anônimo disse...

Sama,

Difícil ler tua crônica e não sentir um desejo incontrolável de escrever uma carta e depois sair correndo para os Correios.

Valeu pela visita ao Estradar. Amanhã tem crônica nova.

Um abraço,

Dimas Lins

Anônimo disse...

Sama,
lindas recordações... lindas tuas tias!
Um grande abraço,

Unknown disse...

Sama..acertasse uma bomba no cantinho. Faz tempo que não dava um chute tão certeiro. Não tem goleiro que defenda. Muito bom
João Valadares

Mariana Mesquita disse...

Lindo, Sama...

Ó, li a matéria. Bem escrita demais, como tudo que você produz. Só não sei dizer ainda se gostei ou não, pelo meno de rebu. No fundo, deu uma lavadinha de alma, sim. Mas abafa!

Beijo pra ti.

Geórgia Alves disse...

Sama...putz, inventasse um "modo" muito bom de clarear entendimento dessa busca. Quem disse que a felicidade não tem preço? tá certo: tem valor! Grande que nem esse "nózinho". Que bom saber que tu "existe".

Anônimo disse...

Meu Deus, que é isso?
"Enlouquecer sempre..."
"Milagres diarios da existencia..."Uau!!

Anônimo disse...

LINDO........LINDOS VOCÊ E SUA TIA!!Abraços,Graça.

Anônimo disse...

Bacana seu texto Sama, dá até vontade de continuar tentando ser feliz... Um abraço do seu amigo anônimo.

Anônimo disse...

Meu filho, estou aqui na casa de dois jovens adolescentes...acabei de receber sua missiva,ela foi escrita realmente na Olivett, adorei. Amanhã coloco duas de 1 centavo no correio, se prepare!!! Não perca muito tempo lendo minhas cartas, pois você tem muito o que fazer. Um beijo no coração.

Anônimo disse...

Samarone,
possivelmente Liseux não é sobrenome da família, suponho. Tive uma tia avó catolicíssima, e aprendi o nome das santinhas. Sta Terezinha de Liseux é um nome "composto" como Santo Antônio de Pádua, ou Terezinha de Jesus.
Abraços,
Ana

Anônimo disse...

Samarone,

Há muito eu ouvia falar de seus textos, mas jamais havia tido acesso a eles. Saber que você tinha um blog, então, só nessa sexta-feira, na Casa de Saúde São Raimundo, em uma tarde de visita ao tio Ademar. Eu estava com duas cartas dentro da agenda para colocar nos Correios e comentei: "Tia, cada cartinha dessas vai me custar míseros cinco centavos. São pro meu amor, no Rio de Janeiro". Ela muito surpresa indagou: "Aumentou?!" E foi então que me contou do "Felicidade a dois centavos"; anotou o endereço e vim aqui conferir. MARAVILHOSA CRÔNICA! Já tem uma hora que navego, alternando entre o "estuário" e o "que meros poemas", e estou encantada, por ser amante da leitura, poesia, artes. Quero parabenizá-lo pela sutileza, leveza e qualidade de seus textos, dizer que o seu já faz parte dos meus sites favoritos, e convidá-lo a conhecer o Recanto das Letras: www.recantodasletras.com.br. Sou uma das inúmeras autoras, perdida no meu "infinito particular". Um forte abraço, com sinceras invejas de suas andanças pelo mundo (risos). Tenho um amigo aqui em Fortaleza recém-chegado de Cuba. Foi pra estudar Medicina, mas não agüentou... Marla Rochelli (neta de Djercila).

Anônimo disse...

Utilidade pública: a carta social só pode ser social se for enviada de pessoa física para pessoa física, em envelope comum e com peso de no máximo 10g. Custa apenas R$0,05, para qualquer estado brasileiro.

Se exceder os 10g, os valores aplicados serão:
0,60 - até 20g
0,90 - até 30g
1,20 - até 50g
Para carta registrada, aumentar 3,20 independente do peso.

Apesar de mandar muitas cartinhas e cartões (sociais ou não), recebo poucas. E-mails? São milhares, assim como as ligações. Mas eu sinto mesmo é falta de algo palpável, chegando pelos Correios, que não seja extrato de banco...

Você pode entrar em contato comigo através do Recanto:
http://recantodasletras.uol.com.br/autores/mrochelli

Vamos manter contato! Abraços!