Toda noite a cena se repete. Lá pelas 2h22 da madrugada, dois vigias noturnos passam, aqui pela rua, levando como armamento para espantar eventuais ladrões, dois sonoros apitos, de marca desconhecida. Lá na esquina, defronte à casa de Das Neves, eles soltam três ou quatro grandes silvos, o suficiente para estremecer toda a vizinhança e me despertar bruscamente de algum sonho lindo. Tenho um sono bom, quando deito não fico com enroladinha ou contando caneirinhos, durmo mesmo, igual a garçom, quando volta do trabalho no ônibus. Mas caramba, apitos no silêncio da madrugada, numa rua sem saída, só um surdo não escuta.
Quando estou muito cansado, olho para o relógio, tento lembrar se estava sonhando algo interessante, e dou graças a Deus ser ainda alta madrugada. Volto a dormir com mais raça, achando o lençol o objeto mais importante do globo terrestre, como diz Seu Vital. Quando não, perco o sono, e tudo se modifica radicalmente. Desço, faço um chimarrão e vou para a escrivaninha, trabalhar. Preparo aulas, penso em alguma crônica, leio minhas coisas, vejo as pendências do dia que começou precoce, enfim. Este textinho de hoje, por exemplo, nasceu por causa dos apitos. Eles, os vigias, passam, apitam e vão embora. A inutilidade do estardalhaço é notória, mas são as coisas da cultura, não vou discutir. O Cabo de Santo Agostinho está aqui desde antes do Cabral, quando o Pinzon chegou, mas essa história é longa e me falta base histórica.
O problema é que eles, os vigilantes, com essa ondinha, acordam também o galo de Renato, que mora aqui no quintal. O galo, que não tem nome e não é besta nem nada, tem arroubos espirituais imensos, bate as asas como quem vai voar e solta aqueles gritos desajustados, como se o mundo tivesse que olhá-lo e escutá-lo. É um galo com problemas sexuais e de fuso-horário. Ele pensa que 2h22 já quer dizer que o dia amanheceu, e manda cocoricós imensos, é capaz de ele ter três pulmões. Aqui do meu escritório, vou avisando: menos, meu filho, menos. Segundos depois do primeiro berro galístico, o galo do vizinho sente-se incomodado com aquele pandemônio e começa uma briga cívica pelo melhor canto de galo. E eu no meio. A contenda só tem fim com a chegada do sol, que Deus é grande.
Mas não reclamo. Sou um sujeito com tendências cada vez mais fortes às simpatias que às antipatias. O Ferreira Gullar disse outro dia que a gente inventa a vida, para o bem ou para o mal, para a alegria ou para a tristeza. Estou tentando inventar para a alegria e para o bem.
No fundo, esses vigias devem ter algo de muito solitário na alma, a ponto de pedir a atenção com apitaços, em plena madrugada.
E sempre gostei de animais. Galo, pelo que me consta, é um animal. Então deixemos os vigias e os galos em paz.
6 comentários:
Sama,
Crônica às 04:57h só pode ser coisa tua. Haja galo e haja apito. A questão do apito, na minha cabeça, está mais para os vigilantes avisarem aos morarem que, de fato, estão trabalhando, pois acho pouco provável que o apito seja capaz de enfrentar as armas dos bandidos.
Tempos atrás, quando morei em Olinda, tinha uma turma do apito que obrigavam os moradores a pagar o serviço, eles gostando ou não. Ou seja, parecia coisa da máfia italiana, em que o sujeito era obrigado a pagar proteção. Espero que não seja o caso da sua rua.
No mais, tenho tido dificuldades para dormir ultimamente. Mas não tenho encarado como uma coisa ruim. Ao contrário, é a cabeça fervilhando com sonhos, desejos e vontades. Estou tentando colocar alguns desses sonhos no papel, ou melhor, na internet, como é o caso do Estradar. E, para isso, o Estuário é sempre uma grande fonte de inspiração.
Um abraço,
Dimas Lins
Correção: "tinha uma turma do apito que obrigava os moradores..."
A pressa é inimiga do português!
Um abraço,
Dimas Lins
tenho sorte, minha rua tem saída!
Sama,
tenho o sono leve, quase sempre me acordo com os latidos dos cachorros quando o caminhão do lixo passa às 4h da madrugada para recolher os lixos que produzimoas. Fico pensando nos coitado dos trabalhadores, que além de recolher os lixos, têm que enefrenta os vira-latas.
Essa tua crônica me fez lembrar disso.
Um abraço,
"...quando havia galos, noites e quintais..."
Muito boa, Samarone, lembrou o João Cabral de Melo Neto. Acho que o velho poeta era também um insone invocado com o canto dos galos. Parece que desse quiprocó galístico ele entendia bem, até para fazer poesia, como já tinha feito Rimbaud ("J'ai fait la magique étude / Du bonheur, que nul n'elude. / O vive lui, chaque fois / Que chante le coq gaulois.")
Mas dizem que numa panela de pressão quentura os bichos dão até um bom caldo...
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