quarta-feira, 22 de agosto de 2007

O gato



Com o traço mágico do João Lin

São 6h22, acabo de entrar no ônibus Centro do Cabo, rumo ao Recife. Pego o ônibus mais cedo porque dou aulas às 8h, e tenho uma aversão sentimental de proporções bíblicas, com o fato de chegar atrasado em sala. Desde a época em que ensinei na Católica, gosto de chegar cedo, um tempinho antes, para ver o conteúdo do dia, organizar pastas, passar na secretaria, dar bom dia, boa tarde ou boa noite, bebericar um café, chegar sem pressa, ver os alunos chegando aos poucos. Já diz aquela velha lenda indígena que quando a gente corre muito, a alma fica lá atrás, é preciso esperar. Melhor então ir com a alma.

Sim, mas onde eu estava mesmo? Ah, perto de passar pela roleta do ônibus, e aquela conversa toda sobre horários. O leitor vai dizer que sou um obsessivo-compulsivo, por estar banhado, arrumado e com o gosto de café na boca, às 6h22, faltando mais de 1h33 para o início da aula. É que o distinto leitor não mora no Cabo de Santo Agostinho e não sabe que tem um “Semi-Expresso” saindo às 6h5, outro às 6h25.

O “Semi-Expresso”, caro amigo ou amiga, é um ônibus que corta caminhos e o motorista parece ter uma tara sentimental de chegar ao Recife. Exatamente uma hora depois, estou no Cais de Santa Rita, e caminho para a escola mansamente, olhando os barcos matinais à beira do rio, os peixes magricelas pescados em alto mar, vendedores de pipoca com aquela cara de enfado. Atravesso alguma ponte e estou no Bairro do Recife, onde fica a escola. No ônibus comum, a viagem se torna uma odisséia lenta e desalentadora, com milhares de paradas separando o Cabo do Recife, a Imbiribeira lembra mais uma BR dessas do Brasil, que nunca chega ao fim.

Preciso urgentemente comprar um anti-dispersivo, porque hoje está difícil chegar ao assunto principal.

Voltemos. São 6h23, vou chegando à roleta, e escuto um reclame felino.

“Miau...”

Coisa de gato faminto. Olho para trás. Uma senhora gordinha, baixa, agitada, segura um saco. De dentro, sai outro miado, e movimentos típicos de quem não está gostando daquela viagem. Ela senta de um lado do ônibus, mas perde o lugar à janela, olha para outra criatura e pergunta:

“Posso ficar nessa janela aí? É que se eu precisar jogar ele fora, não morre”.

Sento por perto, que quero ver o desenrolar dos fatos. O gato continua miando, sem entender nada.

Vinte minutos de viagem, estou cambaleando um pouco com aquele ventinho no rosto, porque sou um camarada fissurado em janelas, escuto um comentário perdido que me desperta:

“Vou soltar você”.

É a distinta senhora, conversando com o felino. Daqui a pouco, ela fala bem alto, com a disposição de um gerente de mercadinho de subúrbio:

“Peraí, motorista, que vou jogar o gato fora”.

Meu teclado do computador está sem ponto de exclamação, mas é o caso.

Os passageiros prendem a respiração. Olho pela janela. Um gato malhado, de idade incerta, é arremessado, nome não revelado, desce por um terreno íngreme, fica olhando meio perdido, desconfiado, procurando os seus. Não tem ninguém conhecido, sequer um primo. O motorista só pensa em chegar ao Recife, acelera e deixa o animal comendo poeira.

“Ele só queria estar lá em casa, mas não é meu”, diz a mulher em voz alta, meio aliviada.

“Eu não gosto dele, mas não judeio”, completa.

“Não judeio com nenhum tipo de animal”.

O motorista se mete, o cobrador dá pitacos obsessivos. A parte da frente, onde está aquela turma que não paga mais passagem, entra num seminário internacional sobre a relação dos homens com os bichos, se bem que homem também é bicho. Surgem especialistas, correntes de pensamento, análises sobre a personalidade de cada espécie, filósofos e existencialistas. Comparações sobre gato e cachorro me lembram meu amigo Sérgio, que considera o gato um sujeito meio sonso. Meu negócio é com cachorro. Tenho certeza que em alguma vida passada, fui um vira-lata raçudo.

“A senhora podia jogar ele até com o ônibus correndo, que ele não morria”, comentou um expert, que certamente nunca teve um gato. "Gato resiste a tudo".

“É, mas eu não judeio. Não gosto de judiar os bichos. Se não quer, é melhor deixar livre”.

Desconfio que ela falava mesmo era dos humanos.

14 comentários:

Anônimo disse...

Sama,

Belíssima crônica sobre a animalidade humana, se é que posso chamar assim. Fiquei imaginando o pobre do gato sozinho num lugar estranho, "sem dinheiro no banco, sem parentes importantes e vindo do interior".

Êta, mundo cão! (ou melhor, felino!)

Um abraço,

Dimas Lins

Anônimo disse...

"ser um bicho indefeso. a minha única proteção."
bem, escrevi isso ontem à noite no meu diário. engraçada a coincidência né?
sei que não fui cachorro, tenho mais de gato mesmo. vai ver fui um gato jogado da janela do ônibus também alguma vez na vida. é, acho que foi isso. tá explicado. o presente da liberdade como prova de uma espécie valiosa de amor. uma vez na rua, os caminhos se multiplicam.
acrescentaria só uma palavrinha ao sábio pensameto da distinta senhora que ensina sem nem saber que ensina: "se não quer cuidar, é melhor deixar livre".
adorei a crônica de hoje. não, amei.

un petit bisou pour toi

Anônimo disse...

Lembrei do Daniel da Idade da razão JP Sartre

Daniel queria afogar o gato no rio sena.

Viva a Liberdade Poetica..

Adorei

Anônimo disse...

Mas q, à primeira vista, a figura lembra outra coisa, isso lembra...

Anônimo disse...

Sama,

Voltei ao blog e vi o desenho de João Lin. Eles sempre me chamam a atenção. Já havia visto outros traços dele aqui mesmo no seu blog, mas nunca havia escrito uma mensagem para destacá-los. são tão poéticos, quanto suas crônicas.

Um abraço,

Dimas Lins

Anônimo disse...

Coitado, agora ele pode está ainda mais longe do dono... Se a senhora não era dona, então ele estava perdido e se estava perdido, agora é que vai ser triste...Fiquei com pena do gatinho.

Anônimo disse...

Tadinho deste gato. Agora só tem 6 vidas. Miau!

P. disse...

Quantos "gatos" não são atirados pelas janelas dos ônibus todos os dias?

Desenhando no escuro
http://www.pebodycount.com.br/

Claudemir Florentino Barbosa, 21 anos, enxerga o mundo com apenas 5% da visão. Ele é portador de Glaucoma. Não tem pai nem mãe. Mora por aí, nas sombras da periferia recifense. Nos becos do esquecimento. Bem pertinho do nada. Desde pequeno, vive como um nômade. De um lado para o outro, sempre bem longe das oportunidades.

Fui ao encontro do jovem na quinta-feira passada. Na primeira pergunta que fiz, a resposta me deixou tonto. “Onde você mora?”, perguntei. “Não moro”, respondeu. Continuamos o papo e descobri a agudeza de espírito de Claudemir. Estava diante de um talento. Talento que mofa na periferia.

Os desenhos dele impressionam pelos detalhes. Diz que sempre sonhou em trabalhar com animação gráfica, mas nunca mostrou o que faz a ninguém. Simplesmente porque não tinha ninguém para olhar o que ele produz.

Pergunto o que ele queria da vida e recebo mais um cruzado de direita. “Chance”, responde. E ele começou a me mostrar os seus desenhos. Cada página virada, a esperança.

Claudemir iria se submeter, no dia seguinte, a um teste de aptidão para tentar uma vaga no curso de animação gráfica na Fundação Joaquim Nabuco. É o Desenhando Culturas, um dos primeiros passos do Pacto pela Vida. Pena que apenas 36 garotos, selecionados das escolas públicas de Santo Amaro, vão participar do projeto que tem um ano e meio de duração.

Serão 1,2 mil horas-aula, 20 horas semanais com conteúdos de animação, história da cultura artística, informática, ética e cidadania e português.

“Não temos oportunidades. Quando nos dão, não podemos perder”, falou Claudemir, no momento em que fui embora. É isso. Acredito que as saídas para a construção de uma cidade menos violenta existem. Claudemir personifica a esperança.

Anônimo disse...

Muito boa!!!!!! Mas coitado do gato, vocë deveria ter descido e ter o pegado! hahahaha
Abraços Sama, vocë é demais!!!

Anônimo disse...

Peruca,

Na sala de aula, tem também os cogumelos que tu desenha no quadro, acompanhados sempre de alguma frase ilusional.

O gato vai voltar pra a casa dessa senhora. Afinal, ela não percebeu que o bichano comprou o imóvel. Agora é dele e ninguém tem nada a ver com isso.

J.

Samarone Lima disse...

Peruca,
que história é essa de cogumelos no quadro?
Sama

Unknown disse...

Ol� Como fa�o para comprar o livro seestou no litoral do Rio Grande do Norte? Tem como faze um dep�sito e uma conta banc�ria e me enviar o livro pelo correio? ludmila_de_abreu@hotmail.com

Samarone Lima disse...

Renato, mandei um email para a ludmila, espero que tenha chegado. Vamos ver se dá certo esta venda on line.
Samarone

Anônimo disse...

Prefiro a história da lendária música infantil que diz "atirei o pau no gato". Jogar o felino pela janela do ônibus é demais... De bom mesmo ficam seus contos das coisas simples do nosso cotidiano. Abraço do também TRICOLOR! Alexandre Cavalcanti