segunda-feira, 6 de agosto de 2007

A tímida, Machado de Assis e um segredo

Ela, esta amiga recente, ficou sabendo que eu estava trabalhando com literatura em minha Oficina da Palavra, com jovens do Recife. Então, mui modestamente, ofereceu ajuda. Me convidou para assistir uma aula que ela dá em um cursinho pré-vestibular. Tínhamos nos visto somente uma vez, no lançamento da Biblioteca Popular do Coque, o tempo suficiente para o reconhecimento.

Sim, eu adoro receber ajudas. Fui lá, no cursinho. Ela estava cercada pelos alunos, com aquele jeito maternal e cuidadoso que alguns professores têm. Almoçamos, conversando os livros, os caminhos e descaminhos da sala de aula, desta troca misteriosa que acontece entre professor e aluno. Falamos de nossas vidas, também, claro.

Mas havia algo nela que me tocava. Uma timidez. Mas não uma timidez disfarçável, como a minha, mas uma timidez intensa, enorme, que vinha da alma. Me lembrou muito a Clarice Lispector, que se defendia escrevendo. Então fiquei pensando comigo: como ela consegue dar aulas para turmas de 100/120 jovens, ansiosos pela vaga nas faculdades? Qual o mistério?

Chegou a hora da aula. Fiquei quietinho, ao lado do meu fiel amigo Ailton. Combinamos que ela, a minha amiga, não iria falar nada da minha presença, mas fui mortalmente traído no começo da aula. Também pudera: um quase quarentão, cabeludo e barbudo, no meio da moçada, chamava a atenção.

"Temos hoje dois convidados", disse, enquanto eu me afundava um pouco na cadeira. Ao lado, o velho e bom Ailton, do Alto José do Pinho, que faz um pré-vestibular pelas bandas de Água Fria.

E súbito, aconteceu o fenômeno. Ela, a minha amiga tímida de dar dó, começou a sua aula. A voz ganhou força, ela mobilizou a atenção daquela multidão de jovens de uma forma inacreditável. Durante duas horas, falou sobre Machado de Assis. Mais que isso, falou dos caminhos da literatura, da vida, lembrou que a gente não pode saber de si, sem querer saber do outro. Vimos quase presentes Quincas Borba, Rubião e Sofia. Conversamos longamente com Dom Casmurro, Bento, Capitu e Escobar. Entendemos os personagens, seus dilemas, suas derrotas. Compartilhamos as batatas que seriam apenas dos vencedores. Descobrimos que a questão importante nunca é a matéria, que o essencial é invisível, sempre. Adélia Prado entrou de surpresa, dizendo que "erótica é a alma".

Várias vezes olhei para meu amigo Ailton. Ele estava com o queixo mole, ainda meio perplexo com tanta boniteza. Não, não era uma aula de pré-vestibular, era um passeio pela beleza, pelo sonho, por territórios jamais demarcados. Quanto mais eu via minha amiga em cena, mais pensava: onde ela deixou toda aquela timidez? Parecia estar em casa, acolhida, à frente de um público atento e quieto. Entendi que minha amiga estava protegida pelas palavras.

Quando terminou, fiquei quieto com meu amigo. Dois bobões, depois de uma torrente de intensidade. Cada vez mais, tenho a certeza de que a literatura salva, que a palavra cura, que ler e contar histórias faz as pessoas sobreviverem com uma ração a mais de esperança, um punhadinho a mais de quase nada, que muitas vezes se torna quase tudo. Toda terça-feira, se ela deixar, estarei lá, matando minha fome e minha sede.

Quando fomos saindo do auditório, vi que ela já tinha voltado á timidez de antes. A fala já estava mais baixa, os gestos mais contidos. Então perguntei:

"Como é que você consegue?"

Ela me contou baixinho, mas é segredo nosso.


Para a Flávia Suassuna, pois.

14 comentários:

Anônimo disse...

talvez o segredo da flávia, que não conheço, seja a transcendência unida a beleza... li um poema dela inacreditável, que só não passei para frente publicando no meu blog p.q. fui tímido em pedi-lo... tlavez seja isso: ela é uma poeta dando aula e isso faz toda a diferença...

Anônimo disse...

Samarone
eu sou a tal que falou a Flávia sobre seu blog, já indicado por uma amiga pernambucana, que vive em Brasília, e o lê (a você), religiosamente.
Não é a toa que Flávia escolheu o nome de "Trança" para o blog dela. Veja só: você escreve, alguem lê, em Brasília, passa para mim, em Recife, que passo para Flávia, que se encontra com você em um evento social literário, você assiste uma aula dela e - misteriosamente - descreve, brilhantemente, a luz que ela emana! Para mim, esta é uma trança tecida por Deus! e com algum propósito, pois não acredito em acasos.
Parabéns por seu talento, que eu também acompanho, pela descrição desta pessoa linda, que é Flávia, e pelo privilégio de poder estar perto dela. Acho que vocês fazem bem a um montão de gente!
Hoje, você descreveu brilhantemente este mistério que é Flávia Suassuna!

Anônimo disse...

Sama,

Sua descrição da aula nos faz pensar que estamos no teatro, assistindo às obras de Machado de Assis.

Agora fiquei curioso e pergunto a Rosário: qual é o endereço do blog de Flávia Suassuna?

Um abraço,

Dimas Lins

Anônimo disse...

O google já me respondeu.

Um abraço,

Dimas Lins

Andréa disse...

Dimas,

é http://fsuassuna.blogspot.com

Andréa disse...

O google foi mais rápido do que eu! ^^

Anônimo disse...

Samarone, minha filha é amiga do filho(Felipe) de Flávia e eu não a conheço. Hoje, por coincidência, vi no NE TV da Globo uma aula não sei se de Literatura ou de História sobre o Barroco e fiquei tão encantada quanto você descreve lindamente nesssa crônica. E pensei: se eu tivesse tido uma professora de História ou de Literatura que transforma cada aula num poema apaixonado sobre aquilo que fala, talvez hoje não estivesse fazendo da Biologia e das Ciências o motivo de continuar numa sala de aula. Parabéns a você mais uma vez pela sensibilidade de ver e de falar as coisas simples de modo tão intenso e a Flavia Suassuna também por esconder tão bem a timidez que você percebeu. Você tem razão quando diz: "a literatura salva, que a palavra cura, que ler e contar histórias faz as pessoas sobreviverem com uma ração a mais de esperança, um punhadinho a mais de quase nada, que muitas vezes se torna quase tudo." Um cheiro, de mãe.

Anônimo disse...

Sama, revela logo o segredo de Flávia.
Ab do mano PH

Anônimo disse...

Samarone, Flávia, a magia de uma sala de aula é partilha, uma alegria de trazer à vida as personagens, histórias, alegrias, dores, glórias, revividas nos olhares, "insights" e coisa e tais.
Caramba, que negócio legal esse relato, lembrei-me da melhor professora que já tive (entre outras), Piedade Sá, que está lá, nas Letras da UFPE, a mesma energia, a mesma sapiência, o mesmo espetáculo de sabedoria numa imensa simplicidade de dizer as coisas, no mesmo rigor de saber que devemos, antes de tudo, querer aprender; que devemos, antes, e sempre, estar prontos para a humildade de querer aprender.
Putz, Sama,valeram as histórias de mestres, vamos aprendendo a saber com quem sabe ensinar a aprender...

Anônimo disse...

Samarone, você descreveu tudo que sinto quando assisto às aulas de Flávia, fico feliz em saberque não é só eu que fico emocionada durante as aulas, ela transmite poesia quando fala das batatas.
Parabéns pela sensibilidade, teria que ser uma pessoa tão sensível e tímida quanto ela para descrevê-la tão bem.

Anônimo disse...

Samarone, você descreveu tudo que sinto quando assisto às aulas de Flávia, fico feliz em saberque não é só eu que fico emocionada durante as aulas, ela transmite poesia quando fala das batatas.
Parabéns pela sensibilidade, teria que ser uma pessoa tão sensível e tímida quanto ela para descrevê-la tão bem.

Anônimo disse...

Nunca assistir uma aula da Flávia, mas os textos dela públicados no blog sempre me encantam... são simples e me tocam carinhosamente, sinto talvez a mesma emoção que vocês sentiram.

Mariana Mesquita disse...

Fui aluna de Flávia e Lívia, nos idos dos anos 80, na Escola Parque...

Anônimo disse...

Não o conheço, mas sinto-me lisonjeada em poder me comunicar com você e dizer-lhe que estou impressionada em como há pessoas tão capacitadas e sensíveis no mundo! Senti-me emocionada ao ler esta publicação pois vi o que eu sinto fielmente, e brilhantemente, descrito por você.Obrigada.Uma aluna de Flávia Suassuna.