Espaço para crônicas das mínimas coisas. Estuário é o lugar de encontro do mar com o rio, uma das regiões mais férteis do planeta. Salgado e doce se misturam, como o suor e a saliva. É a desembocadura de um rio, que pode ser muito bem o Capibaribe, que atravessa o Recife, cidade onde vive o autor dos textos, Samarone Lima.
terça-feira, 28 de agosto de 2007
Confissões de um leitor obsessivo-compulsivo - Parte II
Com a ilustração do mago João Lin
Como eu vinha dizendo na crônica anterior, o maior problema do leitor obsessivo-compulsivo é a figura do "conhecido", aquela pessoa que habita um lugar sentimental incerto em nossa vida. Não é amigo, não tem intimidade, não é inimigo, não tem maldade. É apenas um conhecido.
Quando um conhecido entra no ônibus em que estou, lendo meu livrinho, tomado por alguma história, quieto como um passarinho, já sei. Ele vai sentar ao meu lado, com um sorriso, e dizer:
"Samarone, tudo bem?"
Vou ficar tentando lembrar seu nome e ele vai fazer a idefectível pergunta:
"Como está o Poço da Panela?"
Acabou a leitura. Vou explicar que desde dezembro do ano passado estou morando no Cabo de Santo Agostinho.
"No Cabo?"
A cara de espanto será imensa, parece que de repente estou no Iraque. Tudo bem, eu admito, o Cabo é longe, muito longe do Recife, mas tem gente que faz uma cara tão esquisita, que já me dá logo um cansaço espiritual.
Como eu vivo mudando de emprego, ele vai perguntar se ainda estou ensinando na Católica, de onde saí há uns anos.
"Não, estou ensinando na Kabum!", reponderei, desalentado ao ver o livro fechado, sem chance de retomada.
Se ele já souber o que é a Kabum! (tem acento de exclamação mesmo), é uma vantagem para mim, porque não terei que explicar o que é o projeto, os 80 jovens, enfim. Se não souber, terei que explicar. Adeus mais vinte páginas de "Noites do Sertão", que estou lendo. Mas terei que explicar meu trabalho na Oficina da Palavra, o projeto de incentivo à leitura etc. Todo mundo acha lindo esse negócio de estimular a juventude a ler, parece que o sujeito vira um feiticeiro, xamã, curandeiro, mas se preocupar com bibliotecas da galera menos favorecida, ninguém se preocupa.
Se o conhecido for um "conhecido do estádio", da torcida do Mais Querido, que é o Santa Cruz Futebol Clube, onde deposito minhas esperanças futebolísticas desde antes da criação do mundo, terei que escutar uma avaliação profunda sobre o elenco, a torcida, questões de caráter do treinador, o destempero de algum dirigente, dilemas existenciais sobre o lateral esquerdo que não sabe cruzar, o volante que não tem consistência. ´
Como escrevo para o Blog do Santinha, serei sabatinado, perguntado, escrutinado, virado do avesso para explicar o inexplicável de nossa campanha na Série B, como se fosse o responsável pela contratação dos jogadores. Serei indagado sobre o público do último jogo, número de sócios em dia e outras querelas envolvendo o Clube das Multidões. Sairei pela tangente, e o livro do Guimarães Rosa já vai estar queimando em minhas mãos.
Com um golpe de sorte, o conhecido irá descer na metade da viagem, e chegará uma sensação de paz, plenitude espiritual, porque a leitura poderá ser retomada sem mais delongas, e dificilmente entram dois conhecidos no mesmo trajeto, aí é muito azar para um obsessivo literário só. Mas não, o conhecido sempre vai até o final da viagem. Pior: tem muito mais assuntos que seu melhor amigo.
Numa viagem para o cabo, eu e o Valdemir Leite, meu amigo do peito desde os tempos da Católica, conversaríamos um bocado, mas apareceriam muitos silêncios para uma olhada na paisagem, comentários sobre livros, eventuais naufrágios da alma, enfim. O conhecido não, ele fala pelos cotovelos e quer que você tenha respostas para muitos males da humanidade.
Outros inimigos declarados do leitor obsessivo-compulsivo são as mulheres grávidas. Quando elas passam pela roleta, fico olhando e pensando mentalmente "vai lá para trás, lá para trás", temendo o pior. Você está lendo um trecho fundamental do Lawrence Durrell (desculpem, mas meus gostos literários são meio loucos), ou um conto do Juan Carlos Onetti, e a grávida resolve estacionar aquele barrigão na sua frente.
Surge o dilema existencial, moral, social. Claro que você, como uma pessoa decente, vai levantar e oferecer a cadeira. Uso meus santos todos, faços mandingas as mais diversas. "Lá atrás tem cadeira, lá atrás tem cadeira".
Se ela fica ao meu lado, respiro fundo e me dou de presente mais uma página. Só mais uma, minha senhora, segure ai seu barrigão, que "O impossível Baldi" vai resolver sua vida agora, ou a Justine vai dizer algo surpreendente no "Quarteto de Alexandria". Feita a ressalva, o prolongamento do prazer da leitura, é hora de voltar à vida em sociedade. Olhar com aquela cara de gente humilde e dizer:
"A senhora quer sentar?"
Não conheço uma mulher grávida que recuse uma cadeira de um leitor obsessivo-compulsivo, que lutou bravamente por aquele mísero assento. Me consolaria se ela puxasse um livro, mesmo os "Minutos de Sabedoria", e fosse lendo. Teria uma inveja cúmplice. Mas não. Fica olhando para o tempo, pensando certamente no filho que está vindo, o nome, aquela coisa toda muito linda e amorosa.
Tudo bem, mas... ela bem que poderia ter ido mais para o fundo do ônibus, né?
Para Júlio Vilanova, professor, que conseguiu com amigos uma doação de livros para a Biblioteca Popular do Coque.
Amanhã falarei sobre minhas gatunagens literárias, algumas em parceria com Dom Castro e Silva, outras em vôos solo.
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17 comentários:
kkkkkkkkk
Nunca vi um obsessivo-compulsivo por leitura como vc!! Até mandinga pra grávida... rsss
Pelo menos já estou consciente de que, quando te encontrar em algum lugar e vc estiver navegando por algum livro, não irei te importunar, tá? rss
Beijo.
Ei, Keila, deixe disso, é só um pouco de exagero.
Beijos,
Sama
Como moradora do reino do tão-tão distante candeiense compreendo e compartilho de todas as suas inquietações kkkkkkkkk.
Beijos, Samarone! Saudades!!!
"quieto como um passarinho"? igual a um passarinho?
eheheheheh
adorei as confissões partidas e partilhadas
un bisou
Sama,
esta demorou. Mas era capaz de apostar e claro que ganharia que alguma coisa sairia de nossa (educ kabum) conversa, no bar do espinheiro, depois daquela reunião. Só não saberia adivinhar o que, de todo aquele delírio, teria ficado.
beijos.
Samarone, tudo bem, rsrsrs...?? Apois eu, Poeta, quando leio no sacolejo da condu�o, qualquer que seja o ve�culo, tenho � uma dor de cabe�a do c�o... pense numa criatura cega do estupor, rsrsrs...
Beijo,
Adri
Vixe, meu comentário fcou cheio de quadradinho, que foi isso, rsrsrsrs??? E eu nem bebi hoje...
Beijo, de novo.
Adri
Caí de pára-quedas aqui por intermédio do verbo googlar - pesquisando sobre o "jogo do bicho", Rsss... E o que encontrei? Boa escrita, bom texto, parabéns!!!
Sabe... estou meio indignada com o fechamento da AVAL (Órgão que organiza o jogo do bicho) aí em PE...
Beijocas da Aspirina.
Ah! já ia esquecendo, fui teu vizinho... Rs... em Casa Forte.
Agora vou.
Nossa, tenho cá meus dias de leitora-compulsiva. Mas adoro ficar de bobeira no ônibus, paquerando o Recife, inventando histórias sobre quem passa na rua. Tenha mágoa da grávida que faz isso não... é massa!
Beijos bem saudosos!
Sama,
O povo puxa conversa contigo, porque você é popstar da literatura. É o ônus, meu velho. Mas não se sinta assim em relação a estas pessoas. Puxam conversa, porque tem um carinho por você. Quanto às grávidas, faz um acordo: pede para elas segurarem o livro, enquanto você em pé, lê.
No mais, farei como Keila. Nos momentos sagrados, fingirei que não te vi.
Um abraço,
Dimas Lins
www.estradar.com
Sama, estou grávida e moro no Cabo. Qual horário vc pega o ônibus para ir ao Recife? Não quero ficar em pé no transporte coletivo, pois tenho alguns livros para ler durante o percurso.
Abração,
Grávida do Cabo (de Sto agistinho, diga-se de passagem).
Samarone
Sinto a mesma coisa que vc. Sempre tenho um livro para uma olhadinha entre uma audiencia e outra.
Bem, Alguns clientes gostam muito de conversar antes da audiência.
Alguns, olham meu livro e perguntam se eu gosto de ler, e ai desandam a falar....
Eu ficou caladinha. Não adianta de nada. Eles só querem falar.
Samarone
Sinto a mesma coisa que vc. Sempre tenho um livro para uma olhadinha entre uma audiencia e outra.
Bem, Alguns clientes gostam muito de conversar antes da audiência.
Alguns, olham meu livro e perguntam se eu gosto de ler, e ai desandam a falar....
Eu ficou caladinha. Não adianta de nada. Eles só querem falar.
Samarone,
entendo a sua angústia ao entrar no ônibus e tentar ler algumas páginas de um bom livro. Daqueles que só dá vontade de parar quando a obra acaba e não tem mais jeito.
Moro no Recife, mas trabalho em Olinda e passo por muitos momentos como este de estar lendo algo muito bom e ter de parar a leitura para dar o lugar a uma mulher grávida!
Pior que isso, só mulher idosa!
Hehehe...
Abraços para você!
Ahahaha...
Quando encontrar você num ônibus, dou tchau de longe, combinado?
Além de faladeira, tou grávida!
;.)
Beijo
Ei, Mariana, deixe de ser boba.
Sama
Ei, Mariana, deixe de ser boba.
Sama
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