terça-feira, 18 de março de 2008

Louvação de março: A Paixão de Eli

Com fotos de Antonio Braga, do Escola Aberta

Depois de tantas viagens, nada como Hermilo Borba Filho para encontrar um bom mote para escrever.

“Começo o ano tomando várias providências. Uma delas é louvar, todo mês, aqui nesta coluna, amigo ou conhecido que mereça ser louvado. Nada de esperar sua morte, louvá-lo mesmo em vida; nada de necrológio, mas de reconhecimento público de seu valor; nada de louvor somente porque o cujo morreu mas elogio de corpo presente, corpo vivo e bolinando, que elogio faz bem à alma e à saúde quando quem recebe o elogio merece”.
(Diário de Pernambuco, 3 de janeiro de 1974)


Sim, mas quem eu louvaria, em março de 2008?

Fiquei catando aqui, e como já falo muito de meus amigos, das pessoas que quero bem, acho que louvaria algumas pessoas do Recife, que se espalham por aí, e ajudam a cidade a ficar mais bonita. Vou a uma paixão antiga – os anônimos.

Começaria por esses anônimos abnegados que fazem a Paixão de Cristo dos subúrbios, escolas, igrejinha simples. Hoje, recebi convites para ver a Paixão, em Nova Jerusalém, mas não senti uma nesga de vontade de sair para aquela superprodução, ver o Cristo, Maria e outros personagens, olhando para a cara dos atores globais.

Prefiro louvar o diretor Eli Jonas Machado, de 55 anos, que encontrei um mês atrás, quando se preparava para fazer a primeira leitura da Paixão com um elenco de uma escola pública, a Escola de 1º e 2º Grau Mascarenhas de Morais, ali em Olinda, junto ao 7º R.O.



Lamentei as muitas viagens que tive que fazer, pois iria escrever uma matéria sobre ele, para a Continente Multicultural. Eram 14h45, um sol de matar, e ele, um homem animado, camisa simples, calça jeans, uma criatura desprovida de bunda, recebia os alunos, de todas as idades, em um amplo auditório da escola. “Nem almoçar hoje almocei”, foi a primeira frase que disse, e eu tinha certeza que era verdade.

Eli, um abnegado, iria conversar com os alunos, ver quem poderia aproveitar de outras montagens, “quem dá, quem não dá”, como dizia. “Dificilmente a gente corta alguém, só por indisciplina”.

Ano passado, ele envolveu 184 alunos. Este ano, espera botar 250 jovens nesse mundo de paixões. Quem sabe, desperte outras paixões. Ao final, pretende realizar quatro apresentações, em 12 escolas. Hoje mesmo, deve ter Paixão de Eli em algumas escolas.



“Pedro, vem cá!”, grita ele, e Pedro, humilde, se aproxima. É um rapaz magro, tímido, não sei como ele vai se virar com o Pedro. Mas sei que esses tímidos são um perigo. É cada ator danado.

“Ano passado, gastei R$ 13.500,00”, diz. “Este ano, terei que me virar em mil”. Consegue patrocínios, paga as contas, mas a realização mesmo é quando vê os meninos atuando, interpretando, desenvolvendo potencialidades.

Eli, o meu louvado deste março à beira da Paixão de Cristo, resolveu colocar um Jesus negro.

“Ele começou fazendo um fariseu, dizendo – não batam nele, eu carrego a cruz!”

Caramba, isso é que é uma frase forte.

Converso rapidamente com o ex-fariseu, futuro Jesus. Rodrigo Paiva, um rapaz de bom sorriso, obviamente negro. Não terei muito tempo para conversar, é apenas um contato inicial, anoto seu telefone, diz que é a quarta vez que participa da encenação, está feliz com o novo desafio. Sou informado por Eli, que o menino já fez parte de gangues, era virado na escola, hoje trabalha ensinando teatro nas escolas.



Para quem não sabe, são oito fases de trabalho duro, até a estréia. Primeiro, o contato com as escolas, para divulgar o projeto. Depois, explicação para os candidatos sobre o que é “o espetáculo em si”. O que aconteceu nos últimos dias de Cristo na terra. Para quem não sabe, foram uns dias bem atormentados, ele sofreu muito. Terceira parte: leitura e interpretação dos textos. Neste momento do processo, os alunos terão que saber que foi Judas, Madalena, aquele povo todo. Na quarta parte, terão que ler uma parte do Novo Testamento. Vem então a quinta e preocupante etapa, que é a escolha dos papéis.

“Ano passado, faltando 15 dias para começar, o Cristo desistiu. Como ele era ex-viciado, não ficava bem tirá-lo do trabalho”, explicou Eli, mas não entendi bem. Do nada, surgiram três possíveis Cristos. Um tinha sido o Demônio, outro, Caifás, e outro não lembro, porque foi um dia em que estive péssimo no meu trabalho de campo, e estava certo de que voltaria, para acompanhar todas as etapas.

Na sexta etapa, a compra do material, para a confecção da cidade cenográfica. Penúltima fase: gravação do CD com as vozes, os diálogos da encenação. Por último, os ensaios, sempre às 17h, para não atrapalhar a vida na sala de aula.

“Nos ensaios e na encenação, os atores não devem puxar pelo “x”, como na TV”, explica Eli. Quero saber como eles fazem em Nova Jerusalém, com aquele povo todo vindo do Rio.

Eli, que louvo neste mês de março, foi aluno de escola pública. Deixou de estudar em 1970, para trabalhar. “Capinei mato, fui de serviços gerais, servente, eu era semi-analfabeto”, diz, enquanto ajusta a calça jeans folgada, e acompanha a chegada de mais futuros fariseus, soldados romanos, um eventual Pilatos, candidatas à Maria, fora o Judas, que não localizei na sala. “Voltei a estudar em 2.000, por insistência de minha esposa”.

Fez o supletivo do 1º e 2º grau. Duas semanas depois, fez o vestibular para Matemática. A história prometia ir longe, mas eis que chega Ivanildo Diniz dos Santos, o carpinteiro da encenação toda. É o homem disposto, que vai fazer o milagre de transformar madeiras, cola e tinta, na Jerusalém do subúrbio. Escuto uma beira de diálogo.

“Você tem que cortar a madeira direitinho”, diz Eli.

“Ah, isso vai dar trabalho”.

Anoto o telefone do carpinteiro, de Eli, de Jesus. Pela primeira vez na vida, tenho o celular de Jesus, penso em pedir ajuda ao meu Santa Cruz, que estão querendo acabar, mas ainda é cedo, certos pedidos importantes, só com intimidade. O homem tem que ser crucificado primeiro, para subir ao céu, e depois me atender.

Vamos a um matagal na escola, ao lado da quadra sem rede, onde o futebol corre solto, com o sol ainda fumegando. Os meninos vão chegar em casa com a camisa da escola pingando, mas o que importa é o gol de fora da área, de preferência um sem-pulo na gaveta.

Eli e o carpinteiro entram no matagal, tiram medidas, e sinto que estou em outro mundo. Aqui, a paixão é outra. É a paixão pelo teatro, pelo trabalho em escolas, com jovens. Nem deveria se chamar “ A Paixão de Cristo”, mas “A Paixão de Eli”.



Voltamos, ele me diz que tudo ali vai ser limpo, ali será a cerimônia da condenação, ali vai ser a crucificação. Ele vê o cenário pronto, e eu só consigo ver, por enquanto, mato e dificuldades.

Por conta das viagens para o Sertão, não pude acompanhar o processo todo da encenação. Uma pena. Olhei agora no meu caderninho, teve encenação na escola ontem, com repeteco hoje e amanhã.

Acabei de falar com ele pelo telefone. Ontem, na estréia, houve um imprevisto. Estava tudo pronto, Jesus (Rodrigo Paiva), aquele rapaz negro, estava na boca da cena, quando teve um ataque de epilepsia. A encenação só não naufragou, porque Eli, macaco velho de encenações, já tinha deixado um ator pronto. Era o Reinaldo, que estava todo maquiado. Iria interpretar o demônio. Desfez a maquiagem, vestiu a roupa de Cristo, e deu tudo certo. Que o Bento XVI não saiba dessa.

Hoje, o Cristo negro retorna. É ver para crer.

Eli seja louvado.

6 comentários:

Anônimo disse...

Sama, o que sabe Bento XVI de nossos Cristos?! Me pergunto até se ele sabe de qualquer outro...
Lindo o que vc escreveu.
E o nosso povo é realmente digno de ser louvado.
Grande beijo.
Arabela

Anônimo disse...

Saminha, tudo bem?
Louvados sejam os seus textos. Nos fazem um bem danado.
Aqui sigo levando as minhas chicotadas e nehum fariseu que levar a minha cruz por alguns instantes. O diabo está solto.
Abração do mano, PH

Anônimo disse...

Lovado seja Eli e o teatro!

Gabriela disse...

E assim seja louvado!!!!
Evoé Baco!!!

Anônimo disse...

See here or here

Anônimo disse...

Louvado seja Deus q esta no controle de tudo. E parabénss lindo trabalho.