quarta-feira, 5 de outubro de 2005

O futebol e a vida

Recife,5 de outubro de 2005.

Muita gente não entende a minha paixão por futebol, e sei que muitos intelectuais ainda usam aquele chavão famoso: “Futebol é o ópio do povo”.

É engraçado, porque, pelo que sei, o consumo de ópio no Brasil ainda não se tornou um fenômeno popular. Melhor seria “Futebol é a cachaça do povo”, mas trocar ópio por cachaça mudaria completamente o sentido da frase, e tem intelectual que é chato pra caralho.

Mas tantas coisas no futebol servem para a vida, para o cotidiano, que comecei a pensar não só no futebol, mas no jogo da vida, que tem ingredientes como:

O gol contra:

Quando você sabe que fez uma grande merda, e não há como reparar. A bola já entrou, você olha para o estrago, alguém que machucou, uma palavra que não deveria ter dito, sei lá. Simplesmente gol contra (às vezes, até sem querer). São as coisas irreversíveis da vida. Só resta mesmo aceitar.

Na trave:

O sujeito faz tudo certo, encaminha as coisas, capricha naquele projeto, sai dando dribles nas dificuldades, nos problemas, e depois solta o chute certinho e a bola... bate na trave. Novamente, não há o que fazer. Coisas do futebol, como dizemos nós, os apaixonados por futebol. Coisas da vida, diria o sábio Josmar Josino, o “Caveirinha”.

A derrota:

Você está ali na arquibancada, o juiz levanta os braços e aponta o meio-do- campo. Foram meses acompanhando o seu time, muitas horas no cimento da arquibancada, o coração na goela, e uma jogada, uma falta, um vacilo do seu time, e tudo terminou. Perdeu o jogo e o título. Você olha para as pessoas ao lado. Há um senhor de cabelos brancos, muito sério, grave, chorando como um menino. Ele está inconsolável como você. Seu amigo de infância está arrasado, olhando para o chão, como se tudo fosse triste, amargo, doloroso (e é, podem ter certeza). A derrota, ah, a derrota... São tantas na vida. E no ano seguinte, você está de novo, ao lado do seu amigo de infância, pulando feito um saltimbanco, por causa do título que veio naquele gol salvador, no último minuto. Você olha para o lado – o homem grave parece um menino, no jardim da infância.
A retranca:

Às vezes, é necessário jogar na retranca, fechadinho. O seu time fez um gol, e agora é segurar o restante do tempo. Qualquer bola é preciso jogar na arquibancada, mandar para longe. Recuar, suportar a pressão, sustentar o rojão, dar bicudas, não querer jogar bonitinho demais. Às vezes, a delicadeza excessiva se torna fonte de sofrimento, quase uma espécie de punição.

O golaço:

Tantas tentativas deram errado, tantos erros cometidos, e de repente, o sujeito pega a pelota e sai driblando. Passa por um, por dois, vê que está se safando, nem tinha aquela habilidade toda, dribla mais dois, vem o goleiro, ele passa pelo goleiro também, e toca para o fundo das redes. Sai correndo sem acreditar. “Caralho, eu fiz esse golaço”. Me lembro de uma entrevista para a seleção em um emprego, era um negócio meio grande, uma concorrência braba, e eu precisava muito do troço, estava liso como um gambá, naquele frio de São Paulo. Na entrevista-de-seleção, um camarada muito do boçal perguntou algo assim meio ousado, como se fosse algum autor de Dom Quixote e eu dei uma resposta seca, sem hesitar, olhando nos olhos da criatura. “Isso eu faço muito bem”, sem saber de onde veio aquela firmeza toda. Ali eu ganhei a vaga, tenho certeza. Foi um golaço.

Sair para o abraço:

No futebol, por mais que o sujeito seja craque, ele nunca é uma estrela solitária. Todo gol é comemorado em conjunto, com um abraço. Na vida, é preciso sair para o abraço e comemorar as coisas, celebrar em conjunto.

A raça:

Tem momentos no futebol que o talento não resolve. É preciso mais que isso, algo que me fascina, e que se chama raça. Sim, uma força interior para ir adiante, para se superar. Falta fôlego, muitas vezes falta até talento, mas sobra a vontade, a energia interior, algo que vem do fundo da alma, isso que chamo raça. Raça para enfrentar as coisas, para dizer “parou por aqui”. Raça para dizer “eu vou vencer essa porra dessa depressão”. Raça para viajar muitos quilômetros somente para dizer à pessoa que ama que a ama mesmo, ora bolas.

Depois acrescento mais coisas. Os amantes do futebol podem me ajudar. Inácio, please...

Nota: vou ao estádio sempre que meu clube, o Santa Cruz, joga. Nos últimos cinco anos, perdi dois ou três jogos, por motivos graves ou catástrofes pessoais. Um deles foi porque recebi a notícia da morte de um grande amigo argentino. Fiquei em casa, chorando minhas pitangas, mas depois fiquei sabendo que tinha sido um engano, fruto de uma série de informações desencontradas. Ele está vivivinho, o desgraçado do Daniel Raton, a bola bateu na trave, pela graça de Deus.

3 comentários:

Anônimo disse...

Sama,

vc está cada vez melhor. O futebol, às vezes, não. Saudades do mano de BH.

Anônimo disse...

Como são incríveis e belas essas suas metáforas...
um beijo grande!
Luciana (sobrinha de Adri)

Anônimo disse...

Que arretado! Muito boa essa sua comparação! Bjos
Carolina