quarta-feira, 19 de outubro de 2005

A pequena história de Maria dos Desencontros

Ela me disse uma frase que pareceu uma pedrada:

“Hoje, na vida, já não faço tantos planos. É feio o que vou dizer, mas aprendi a viver meio como se estivesse em estado terminal de uma doença, sem muito apego ao futuro”.

Mas depois veio uma pequena frase, um resto de frase, uma sobra de luz que me deixou aliviado.

“O presente já me basta”.

Ah, e seu nome, como ela se apresentou: Maria dos Desencontros.

Não, não é seu nome. Seu nome é muito mais bonito, mas foi assim que ela me contou sua história, há poucos dias. Se considerava contemplada com os desencontros. Viver no tempo presente era sua única realidade.

Quando jovem, muito jovem, naquela meninice que se encanta com a vida enquanto o corpo se prepara para o contato com o mundo, ganhou um presente muito distante. Ele, o amigo, vivia em Angola. Se conheceram nesses programas de intercâmbio, e tudo parecia muito próximo. Ela escrevia com o coração, ele respondia como se fosse o eco, em outro continente. Um eco africano, resvalando em sua pele branca.

Foram dois anos de correspondências, trocas e expectativas, até que um dia ele resolveu visitá-la. Como era surpresa, não avisou. Ela tinha viajado dois dias antes para o outro lado do Brasil. Nunca se viram.

Depois, os desmandos do coração. Aos 15 anos, se apaixonou por um ator e recebeu um “Tchau, guaranau” assim, sem muitas delongas, quando tudo parecia florescer. Era uma menina, talvez fosse ainda muito frágil para aquela morte no peito. Para se machucar bem, foi assisti-lo muitas vezes. Em cena, se tornava maior, mais belo, intenso. Mas havia o grande desencontro entre o palco e a platéia. Para amar, ninguém pode ser apenas espectador, Maria.

Muitos anos depois, já mulher feita, o encontrou no Carnaval, em Olinda. Ah, Olinda, quantos encontros reservaste para tuas ladeiras... Ele se aproximou daquela mulher que não conseguira ver um dia. Agora, ele estava pleno de amor, queria inundá-la com tanta ternura e beleza, mas ela já tinha derramado o sentimento, espalhado suas quimeras pelas calçadas e jardins. Era tarde, pois também florescera. Maria dos Desencontros precisava seguir. Mas registrou o desencontro, mais um. Vira que não tinha mais um brilho nos olhos para presenteá-lo.

Um dia, encontrou um homem, também pleno de desencontros. Mas ele preferia usar outra metáfora para tudo o que vivera. Ao invés do “doente em estado terminal”, ele olhava tudo com uma frase:

“Aceito a fatalidade de cada hora”.

Se inspirara em um amigo artista, que vivia de forma mambembe, andando pelo Brasil encantando crianças e adultos com sua arte. Um vez por dia, o amigo se perguntava:

“E se eu morresse agora?”

Ele contou também suas histórias. Sua alma também era cheia de desencontros. Amara também, desencontrara do amor. Seu coração parecia cheio de ruas que já não mais existiam, casas apagadas, bairros nunca fundados. O pior momento, disse, foi quando buscou tanto o amor que desencontrou de si.

Quando viajou para muito longe, em busca de um velho amigo, ele também já não estava. Perdera-se na neblina do tempo. Contou de seus desencontros não apenas com as almas, mas com objetos e fatos. As muitas cartas postadas que nunca chegaram, a camisa de tricô que a avó deixara, mas que nunca recebera, uma bola da infância que chutara para o vazio da vida. Os desencontros com trens, as plataformas erradas, os dias desencontrados. Ah, e quantas vezes desencontrara da alegria...

E Maria dos Desencontros foi olhando tudo com mais doçura. Se fosse fazer o inventário das dores, perderia de longe para ele. No entanto, ele carregava uma ternura nos olhos, um sorriso de corpo inteiro, como se dissesse que a vida sempre ultrapassa todos os desencontros.

Estavam ali. Ela uma paciente em estado terminal, vendo tudo no tempo presente. Ele, aceitando a fatalidade da morte no próximo passo.

Mas havia algo em comum. Viviam o tempo presente como a grande flor.

Ela abriu um belo sorriso quando ele cantou, timidamente, uma canção de Tom Zé, resgatada de um velho disco empoeirado, no canto da casa vazia:

“Vestir toda minha dor
No seu traje mais azul
Restando aos meus olhos
O dilema de rir ou chorar”.

Maria dos Desencontros guardou isso. Restava aos seus olhos o dilema de rir ou chorar. E sentiu, então, uma espécie de gratidão por aquele encontro, apesar de nunca mais tê-lo visto.



Para Maria dos Desencontros, que me deixou contar sua história.

12 comentários:

Anônimo disse...

Muitas lagrimas e muito riso
neste momento.
Pois entao agora temos um segredo...
muito obrigada.
grande beijo.

Anônimo disse...

" A vida é a arte do encontro..
embora haja tantos desencontros nessa vida"...
Vinícius de Moraes.

obrigada por ter sempre algo de bom a nos dizer... é muito bom ler você, principalmente quando a gente tá de coração desencontrado...

um beijão, "Lu"

Anônimo disse...

Sama, querido, dê noticias de vida... não tenho conseguido falar com vc nem por telefone, nem por email... Me diga, pelo menos, se vc ainda quer participar do projeto...
beijo
Ana Luiza

Anônimo disse...

Belo, belo, belo!

Anônimo disse...

Lindo Samarone! Parabéns...
Priscila

Ivana de Souza disse...

Primeiro anônimo: sim, agora todos nós temos segredo contado perfeitamente bem.

~'Pedro'~ disse...

Muito Bom!
Parabéns, adoro suas crônicas.

Anônimo disse...

ester
um amigo me sugeriu ler a última crônica, eu li... e li tb a penúltima a antepenúltima...e adorei todas! daí resolvi registrar minha presença afinal é injusto me "aproveitar", ou melhor fruir com seus escritos e não retribuir nem com um elogio...:D. então agora q já disse prosseguirei lendo!

Anônimo disse...

Sempre se superando e nos proporcionando momentos singulares de reflexão... Acho que vou me inspirar mais em Maria e viver mais o presente... abraço e parabéns... Acompanho você desde o jc e to sempre me deliciando com suas crônicas... []'s

Anônimo disse...

Tá um calor em Recife...
Ao ler esta estória, senti como se estivesse a mergulhar num mar azul e gelado, refrescando os meus sentimentos!
Abraços
Carolina

Anônimo disse...

Eu ia citar Vinícius, mas alguém lá em cima já o fez.

Anônimo disse...

Eu também te acompanho desde o JC, mas esqueci de anotar o teu blog, quando da despedida do JC. Ontem, tive a feliz surpresa ao entrar no blog que uma colega de uma amiga indicou o orkut, e encontrar esse estuário. Nem precisa dizer que desde ontem leio as tuas crônicas, e já o coloquei nos meus favoritos!
Parabéns!!
Cida