quarta-feira, 26 de outubro de 2005

Sobre a memória, que é irmã siamesa do amor

Recife, 25 de outubro de 2005.

Talvez uma das coisas mais impressionantes no ser humano, a que mais me intriga e me encanta, seja a memória. Ela parece ganhar vida própria, com o passar dos anos, às vezes é cheia de sutilezas, é como o amor, uma boa malandrinha, que nos pega de surpresa. Depois de ter estudado tanto sobre o assunto, uma vez escutei a seguinte frase de Letícia Lins:

“Memória é reconhecimento”.

A frase definiu meus dois anos de mestrado. Nem precisava ter lido tanto, ter pesquisado tanto, se memória, no final de tudo, é como o amor: reconhecimento.

O assunto apareceu depois que cheguei de São Paulo, onde passei seis anos intensos (1994-2000). Foi um período singular da vida. Cheguei um garoto, com 24 anos, e saí já mais arejado para os rumores da vida, com 30. Neste período aconteceu de tudo. Trabalhei em ONGs, no jornal da Igreja Católica, sob o comando de Dom Paulo Evaristo Arns, passei por redações da grande imprensa, sinto que virei jornalista de verdade, encontrei os mistérios do amor, e depois de tanta intensidade, me veio um cansaço e a vontade de fazer outras coisas, coisa que sempre me ocorre na vida. Então fui fazer o mestrado.

E veio a outra fase, que foi de muito sossego, leituras, um apartamento silencioso e calmo, compartilhado com o meu amigo e irmão Gustavo, que vira e mexe, manda sinais neste blog. Viajei muito para vários lugares do Brasil, mas principalmente para o Chile, Uruguai e Argentina. Morávamos na Santa Cecília, um bairro simpático, com muitos nordestinos trabalhando nos bares e restaurantes, os “Mombaça”, porque parecia que a cidade inteira tinha migrado para Sampa.

Foram seis anos de alegrias e muitas tristezas também. Não foram poucos os momentos em que me deparei pensando:

“O que estou fazendo aqui, neste frio do caralho, longe de casa, sozinho?”

São perguntas que a gente faz na hora da grande tristeza, achando que a vida é assim, explicável. Somente o tempo, este Deus, vai responder, na hora certa.

Se eu for olhar meus diários deste período, encontrarei muitas coisas surpreendentes, talvez fatos que eu não lembre, conversas com desconhecidos que nunca viraram crônicas, farras que se perderam nas brumas da memória.

Voltei algumas vezes a Sampa, sempre de passagem, sempre sem tempo para ver os velhos amigos, os que compartilharam coisas importantes, como aniversários, batizados, amigo-secreto-do-final-de-ano, essas coisas que vivo faltando sem culpa, mas que são importantes, embora não sejam fundamentais. Não encontrei Bernardete, minha chefa no Jornal O São Paulo; não encontrei Josmar Josino, o “Valente”, que considero o maior jornalista do Brasil; não encontrei minha prima Érika, a super super, sempre com aquele sorriso largo, aquela conversa intensa, cheia de vida; não encontrei Maria, a dona do mercadinho na esquina onde eu morava, uma cearense com olhos tristes, que tinha perdido um irmão assassinado em Sampa e me parecia infeliz naquele lugar; não encontrei “Tomatinho”, uma senhora da banca de revista que sempre vestia vermelho e logo de manhã me sorria dizendo “ô meu filho...”; não encontrei Camila, que morava num prédio ao lado e já começava a trocar o jornalismo pela dança, pela graça divina.

Passei ao largo. No último dia, saí com minha câmera para tirar as fotos do bairro onde morei. Iria fotografar o velho Manoel, que só me chamava de “Jacaré”, bem como ao Gustavo. Iria fotografar Maria e Tomatinho, bem como os Mombaça. Iria tirar fotos dos três lugares onde morei, além das ruas, de algumas pessoas, do clima de Sampa.

Mas a caminho da Santa Cecília, desisti. Não sei o que houve. Guardei a máquina e fiquei no bairro da Liberdade, vendo os japonezinhos passarem, naquele passo manso. Eu, com meu passo manco, eles, com os passos mansos. Cada um com seu caminhar, foi o que pensei. Entrei num boteco, o “Amigos da Liberdade”, pedi uma cerveja e fiquei ruminando minhas besteirinhas. Atrás de mim, um velhinho japonês que usava óculos escuros, disse bem alto:

“Quando eu melhorar, a Brahma que se cuide!”.

Pensei que velhinho japonês só dizia filosofia Zen. Bem, não deixa de ser uma filosofia, avisar à Brahma que vai entrar rasgando, quando ficar recuperado de algo. Ou seja: agora eu me resguardo, fico quietinho, mas depois, vou cair na gandaia com meus amigos.

Fiquei ali, olhando, ruminando e anotando algumas coisinhas. Não anotei nada de especial. Lembrei de uma frase de Gelman, “com la lágrima seca sobre el pômulo”, e nada mais. Fiquei olhando, quieto e silencioso. Senti uma paz imensa, uma espécie de regozijo. Não havia mais a necessidade de tocar as coisas do passado, para transformá-las. Fiz o meu encontro silencioso. Tudo segue, eu sigo, o bairro que morei segue, os amigos seguem com suas vidas, as lembranças do que vivemos.

Foi uma espécie de armistício. Voltei de Sampa sem saudades, sem lembranças dolorosas, sem cobranças do passado. Encontrei algo que talvez nunca tivesse perdido, mas que ainda queimava. E foi tudo simples, manso, terno. Peguei outro caminho, que me levou talvez mais para dentro de mim. Acho que reconheci algo.

Talvez me tenha saído uma lágrima seca sobre o rosto, eu não sei, desculpem pela crônica tão pessoal e sentimental, a vida segue, a vida sempre segue, como a memória, que é irmã siamesa do amor.

14 comentários:

Anônimo disse...

Sama, não precisa pedir desculpas por nada. É sempre maravilhoso ler suas crônicas e saber um pouco mais sobre você, de seus sentimentos, da forma que você ver a vida. Esse encontro silencioso é necessário e importante. Estava sentindo falta de uma nova crônica, valeu a pena esperar. Super beijo!
Andreia

Anônimo disse...

desculpar o que, Sama? Vc nos proporcionar leituras maravilhosas escritas com o coração? Só se for...bjs, eugenia

Anônimo disse...

Sama

Cada coisa requer o ajuste necessário
para que ela permaneça coisa.

Cada coisa clama seu lugar no mundo.

Pede o aparar das aparências,
solicita ameiar-se entre entes,
requer aprofundar o existente.

Cada coisa tem o peso de sua busca.

...

Sabe, Sama, destes teus seis anos, tive a sorte ou a graça ou o azar poético de curtir contigo, três ou quatro, conheci todos eles, bem menos que vc, p.q. sabes como sou bicho do mato. Sabes que fiz o mesmo, uma vez? Voltei lá sozinho, cobri-me de passado. Tenho uma lembrança saudosa de um dos tantos apartamentos que moramos. Você, sozinho, a mudança levada, o apartamento vazio, sujo de papel pelo chão, e você caminhando por ele com o dedo indicador na parede se despedindo dos dias.

A vida passa e não volta mais. Nós é que ficamos.

A memória é uma tela de aromas farpados:

Uns amam tanto.
Outros, não amam nada.

Há quem passe pela vida
sem saber o que é o amor,
apenas, amolando facas,
desentortando pregos,
dispondo arames farpados
em torno de si.

Para manter um amor
é mais importante ser sábio
que amoroso.

O amor faz a gente
conversar com o nada
cozinhar estrelas no azeite
ver sentido onde não tem,
beber veneno e achar bom.

Amar amar amar
como quem sacia a sede
com um copo de cicuta.

Gustavo.

Mariana Mesquita disse...

Ô, Sama. E eu aqui, tão desterrada. A lágrima que me rolou agora, juro que não foi seca. Pior é que estou numa fase em que não me reconheço em lugar nenhum... Espero chegar ao teu estágio, em que construiu tantas relações bonitas em São Paulo, Pernambuco, Ceará - teu mundo é vasto como seu coração, né, menino?
Um beijo.

Anônimo disse...

"Senhor, todos os homens tem a sensualidade de seu sexo, mas aquele que tem a alma sensual, e assim satisfaz a todas as exigencias de nossa natureza, cuja melodiosa harmonia jamais se comove senao sob pressao dos sentimentos, esse nao se encontra duas vezes em nossa existencia..." Balzac.

Anônimo disse...

Samuca: "É preciso rever, escrever e assinar os autos do passado, antes que o tempo passe tudo a raso". Cora Coralina poetizou e eu, ao ler o teu texto, carimbei. Bj, Ane.

Anônimo disse...

Linda crônica..
Engraçado quando você pede desculpas pela crônica, Sama, e de repente a gente se pega vez por outra entrando no seu Blog esperando pela próxima...!
Beijão!
Lu

Anônimo disse...

Por que eu sempre choro quando leio o que você escreve?

Anônimo disse...

E eu nao me lebro mais quem disse a frase, mas concordo: "o que a memória amou fica eterno".
POr isso que tem certas coisas q a gente traz tao decoradinho e nao esquece mesmo com o tempo.

Anônimo disse...

Sama querido,
Pegar outro caminho que me leve para dentro de mim... Adorei!
Beijão

Ivana de Souza disse...

Oxe, posso apostar que a maioria adorou te acompanhar nessa viagem pra dentro.

Anônimo disse...

Samarone. Nada de se desculpar. A crônica está maravilhosa... Hoje me lembrei de 1999, quando você estava terminando seu mestrado, da Bahia e daquela muqueca de peixe maravilhosa que compartilhamos, junto com mais um colega de albergue no restaurante da Dona Cecília no Pelô, das revelações, nem lembro exatamente sobre o que.
, que cada um trocou naquele ambiente. Valeu! Sucesso e continue cronicando... Você está cada vez melhor!

Anônimo disse...

Samaroni, como as pessoas que comentaram acima sou mais uma a dizer que desculpar o que? É incrível como no pouco tempo que tenho pra acompanhar o teu blog nos dias que entro sempre tem algo que mexe demais comigo, primeiro foi aquela crônica do filme de Zezé de Camargo e Luciano comparando com o nosso Recife e me fez sentir tanta saudades da minha terra, e agora foi esse seu tempo desbravador , onde querendo ou não vc estava correndo atrás de um ideal tal qual eu me encontro aqui nos EUA, dar uma saudade, tem dias que perguntamos: o que estamos fazendo aqui? Mas DEUS tem sempre algo reservado pra nós em cada uma de nossas experiências, obrigada por me fazer refletir e ver que não é só comigo que as coisas acontecem, bem que a minha amiga Adri que me indicou o seu blog diz, vc tem um jeito de tocar nos nossos sentimentos mais íntimos. Obrigada!!!

Anônimo disse...

gleidison, nao sei também como se adiciona o blog na lista dos favoritos. o jeito é falar com a minha professora de blog, mack costa.Tome nota:

mackcosta@hotmail.com

ela é gente finíssima.