Gosto de tudo que vai chegando com uma certa mansidão, um vagar. Coisas, objetos, lugares, pessoas, geografias, quando se aproximam com cuidado, entram no meu universo.
Nunca tive amigos espetaculares de uma hora para outra. Sempre foi cuidadosa, a aproximação. As primeiras conversas, o algo em comum, a prosa mediana, sem arroubos, anúncios de conquistas, genialidades. Não suporto o conhecido que chega com a intensidade além da que suporto, do que o laço daquele instante permite. Fico amuado, dou meia volta como um barco que faz o contorno de um obstáculo ao longe, e retorna ao seu porto. Assim como nas amizades, nos amores, na vida em geral.
Os lugares me chegam mansamente. Morei em tantas casas, bairros, cidades, mas minha chegada é silenciosa e gradual. Geralmente chego somente com o corpo, depois migram os objetos, os livros, as coisas do mundo. Vou reconhecendo a geografia passo a passo, sentindo o cheiro, descortinando os detalhes.
Na música clássica, prefiro o adágio. Os outros movimentos são a minha expectativa calma. Nos jornais, busco sempre uma crônica perdida, alguma nota que tenha sua pequena dose de encanto, embora difícil, nesses tempos bicudos. Daí minha preferência cada vez maior pela literatura.
Os objetos fazem parte desta forma de vida. Às vezes, compro um caderno bonito, capa dura, escolho pacientemente, então esbarro em um caderno velho, encostado, ao relento, e começo a tomar notas nele. Aos poucos, vai se tornando meu companheiro de viagem. Agora mesmo, escrevo em um caderno grande, daqueles de “sete matérias”, como dizíamos no 2o grau. Estava em uma estante, em Fortaleza, condenado ao abandono precoce. O resgatei, e segue comigo.
Durante um bom tempo, tentei achar a caneta certa para escrever minhas coisas. Houve uma época em que as canetas-tinteiro fizeram a minha festa, mas descobri que era somente a felicidade estética. A beleza, a maciez, não eram suficientes para agüentar minha fome de escrita, minha demanda física e espiritual de escrever em ônibus, botecos, lugares ermos, empoeirados. Caneta-tinteiro exige uma mesa, silêncio, calma, uma música ao fundo. Tenho-as comigo como uma espécie de charuto cubano. É uma experiência estética sublime, escrever com uma caneta-tinteiro, enquanto se fuma um bom charuto.
Nos últimos tempos, vingou comigo o mais simples dos objetos, o velho Fusca da escrita. Tenho resolvido minhas demandas de escrita com a velha , simples, banal e raçuda Bic. Mas não é uma Bic qualquer. Precisa ser de cor preta, com a tampa marcada pelos meus dentes, logo no primeiro encontro. E por mistérios insondáveis da natureza humana, basta a tampa se perder, em uma dessas minhas muitas andanças, para que a caneta ganhe logo a condição de claudicante. É como se toda a força do objeto ficasse à deriva, como uma bandeira a meio-pau.
E algo misterioso acontece, quando a velha caneta vai cumprindo lentamente sua missão. Quando a tinta está bem próxima do fim, passo a olha-la com afeição, aquela mesma que os velhos têm por uma cadeira que fica num lugar específico da casa, uma cadeira que tem seu próprio balanço, seu movimento específico, sua textura, sua dose de ternura, a ternura do acompanhamento. Não adianta um parente chegar com uma super-cadeira de último modelo – estará misturando os balanços.
Neste momento, olho a velha Bic com um carinho ingênuo. Já não quero empresta-la, temendo os tradicionais gatunos de caneta alheia. Fico a lembrar quantas vezes ela me acompanhou, me ajudou a tomar notas, sublinhar livros, preparar aulas, registrar minha infinita coleção de frases, minha antologia de besteiras, apontamentos para uma crônica.
Aguardo pacientemente que ela perca a força, suas últimas gotas de tinta, como uma mangueira que outrora jorrou água abundante, e aos poucos vai se esmilinguindo. Passo a escrever com uma certa expectativa. Até quando ela vai agüentar a jornada?
Palavra a palavra, vou me despedindo. Vou aceitando sua temporalidade menor, humilde. Às vezes, vejo um pouco de tinta em meus dedos, então sei que foi uma espécie de carinho sutil. Em pouco tempo,não haverá mais tinta. A Bic torna-se magra como um incenso. Já não me acompanha, mas deixou em meus cadernos o testemunho de um tempo de convivência. Deixou marcas.
Então é isso. Tudo que chega mansamente, para mim, deixa marcas. Pessoas, lugares, objetos, geografias.
Lento, profundo.
Às vezes eu enrolo tanto para dizer as coisas mais simples...
10 comentários:
Hahahahaha eu n deveria rir, mas achei engraçada essa sua última crônica. Sem querer ser grosso, mas já sendo, esse texto me cheirou a materialismo! hahahaha brincadeia... vc n enrola pra dizer coisas simples n, meu querido samarone. Você torna coisas simples em grandes espetáculos. A tal canetinha foi show... bjs e abraços de seu fã
James...
Xiiii... segurem os arroubos, moçada. "Perdi o bonde e a esperança, volto pálido para casa... entretanto, há muito tempo nós gritamos: sim! ao eterno".
Mas se você soubesse como toda essa enrolação faz um bem para a minha alma....
É, Claudia, pra minha também...
Sama, você mesmo disse: "Lento, profundo." Quer enrolação mais linda do que essa? É impossível não se emocionar com seu texto sobre coisas tão simples, como uma BIC, que a cada dia mais se aperfeiçoa e nos dá prazer. Continue assim, meu querido, lento, profundo e com a sensibilidade dos poetas e sábios.
Um cheiro, de mãe.
Anna, esses cheiros de mãe, sempre constantes, chegam à alma.
Um beijo,
samarone
..."descortinando os detalhes"...
Caro Sama,
Tenho horror a BIC PRETA.
Azul é a cor do mar....
A escrita realmente é sua amiga...muitos desejam e reconhecem o valor de se transpirar através das letras...assim como vc faz...sinto que vc escreve com a mesma maestria que faz um regente ao reger uma singular sinfonia...
Um grande abraço
Lisa
Sama,
Fantástico o texto! E ainda dou uma dica, manda a crônica para a Bic que você vai ganhar uma grana!
Um abraço,
Dimas Lins
Postar um comentário