quinta-feira, 27 de abril de 2006

Confissões de um leitor e um pequeno agradecimento

Lembro quando tudo começou, e talvez tenha mudado o rumo da minha vida. Bisbilhotei uma biblioteca meia boca que tinha lá em casa, eu acho que estava ali pelos 12, 13 anos. Encontrei um livro grosso, intitulado "Papillon", e comecei a ler. Fiquei impressionado com aquilo: como podia caber tanta história, tanta vida, dentro de um objeto quadrado, cheio de folhas? Foi minha inauguração. Só hoje fiz uma relação - "papillon" quer dizer "borboleta". Foi meu primeiro vôo, creio.

Depois, cutuquei uma coleção de capa dura e me dei bem. Estava lá "Justine", do Lawrence Durrel. Aí eu me apaixonei pela Justine e pela literatura, tanto que até hoje compro qualquer edição do "Quarteto de Alexandria" que encontrar. Já reli este livrinho, de capa azul, uma dezena de vezes.

Como eu tinha um irmão muito politizado, o Paulinho, pude ler "Batismo de Sangue", do Frei Betto, antes mesmo da adolescência. Foi uma pancada saber dos sofrimentos dos dominicanos e do Frei Tito de Alencar, mas agüentei bem, e guardei as sementes para meus livros.

Quando cheguei ao Recife, em 1987, a minha maior bagagem, além da esperança, era uma caixa de livros. Sonhava em ter uma biblioteca, um dia.

Na minha pobreza de Casa do Estudante e Restaurante Universitário, ataquei várias livrarias, sempre de forma moderada, naquela velha tática de esconder o livro no meio dos cadernos, numa tensão de roer os nervos. Quando saía da livraria com algo bacana, dava vontade de dar aqueles socos no ar do Jairzinho, na Copa de 70. Já pedi desculpas ao Tarcisio outro dia, e fiquei até aliviado, quando uma leitora disse que roubou o "Aurélio"! Me senti até meio santo.

Não sei quando o Fernando Pessoa entrou na minha vida. Sei que li um livro com os poemas do Álvaro de Campos, em uma noite de sexta-feira na Casa do Estudante, o melhor dia de um ser humano, porque todo mundo ia para as farras, e o quarto ficava vazio. Fiquei absolutamente "tomado" pela poesia, como bem diz o meu amigo Gustavo, que está quietinho, lá em Brasilia, preparando algo de muito bom. Atravessei a noite lendo aquelas odes todas, e como estudava teatro, fiquei encenando os poemas, feito um maluco. Fui dormir exausto.

Quando fiz trinta anos, em São Paulo, ganhei o "Livro do Desassossego" da Érika, com uma linda dedicatória. Li e reli o livro vária vezes, ele tinha mais rabisco meu do que do poeta. Até que na quarta-feira de cinzas, dois ladrões patéticos me assaltaram, de arma em punho, e levaram meu livro. Choraminguei aqui no Estuário e Deus escutou minhas preces.

Na segunda-feira, saindo de casa, recebi um chamado de Seu Vital (sempre ele). Tinha chegado uma encomenda para mim. Duas caixas lindas, com laço e tudo o mais. Ele arregalou os olhos. Abri a primeira caixa, eram flores lindas. Abri a outra, era um absurdo de norte a sul. O "Livro do Desassossego", a bela edição da Companhia das Letras, acompanhado de uma edição portuguesa, em dois volumes. Os livros estavam acomodados em um papel muito macio, cor de abóbora, essas coisas de gente delicada.

Os presentes vieram de uma pessoa apaixonada pelas palavras, e que gosta do que escrevo. Diz que não é um presente, apenas "uma retribuição" ao que tenho dado. Mas eu insisto, é um presente sim, e de uma beleza comovente.

Saí com a caixa, fui à casa de Luzilá, mostrar o presente, depois caminhei para a casa de Emilia. Criança não tem isso, de mostrar o presente que ganhou aos amigos? Lucila achou tudo muito delicado. Emilia estava meio de mau humor.

Na volta, lá pelas dez da noite, temi voltar sozinho.

"E se me roubam novamente, com Fernando Pessoa e tudo?"- pensei.

Lucila me deu carona. Vim alisando a caixa.

Vinha pensando em escrever algo muito bonito, para agradecer o presente, mas só me chega o reles, magérrimo, óbvio "muito obrigado". O que eu disser, será pouco para agradecer tanta generosidade dessa leitora.

Ps. informo que em 2.000 pendurei minha carreira de ladrão de livros, e não tive mais recaídas.

15 comentários:

Anônimo disse...

Você voou pela primeira vez com Papillon e eu comecei a navegar aos 5 anos, com Simbad, omarujo. Também adoro o O quarteto de Alexandria e, como você, comecei com Justine, e não sosseguei enquanto não consegui os 3 seguintes.

Anônimo disse...

Linda crônica.
Faltou contar quem deu delicado presente.

Anônimo disse...

Caro leitor ou leitora: a pessoa que me deu o presente não me disse se podia ou não citar seu nome, então preferi ter um cuidadinho. E se for uma pessoa tímida, que quer ficar no anonimato?
Se ela autorizar, digo o nome completo, com muito gosto.
Samarone

Anônimo disse...

voltei! singelo como sempre,
ligeiro como um repente,
silencioso como uma serpente.
andei! curvas tão diferentes,
paredes descascadas,
alma carente.

Anônimo disse...

Sama, que coincidência, também comecei com Papilon, aos nove anos... fiquei tocado.

Estou quietinho mas continuo lendo vc.

... Memória de um ladrão de livros...

Posso contar aqui aquele dia que roubstes um livro em SP comigo e quase apanhastes dos livreiros?

...e naquele outro em que o roubo rendeu uma noite inteira de leitura?

... foste tu que roubaste a coleção inteira do santo agostinho?

... nossa, sama, quantos roubos juntos, inesquecíveis... sabes que já roubei livros teu também... tem uns quatro meu que vc roubou, não foi? acho que foi depois de 2000... Não, em 2000 ainda morávamos juntos e vc roubava livros. Aquele roubo na livraria Cortez, na PUC/SP, não foi em 2001?

... eu, ao contrário de vc, de vez em quando me esqueço que não roubo mais. mas, agora, só poesias.

Poesia p.q. não vejo outra coisa que valha mais a pena de correr riscos.

Queria que essa leitora que roubou o Aurélio contasse a sua estratégia, fiquei impressionadíssimo. É o sonho de todo ladrão erudito.

Anônimo disse...

Sama,
o roubo é herança genética? kkk. No seu aniversário mando de volta os seus livros que tomei emprestado (kkk) quando estive aí na última temporada. Tem Hannah Arendt, Saramago e Neruda. Vão todos em uma mesma caixa para ficar mais emocionante. Viu como a vida é cheia de surpresas? Abraço do irmão ex-politizado, PH

Anônimo disse...

Deus do céu, os larápios de todas as idades e gostos resolveram confessar seus crimes! Aqui vai uma confissãozinha: roubei "O homem sem qualidades", do Robert Musil, um tijolo de quase 900 páginas. Como fiz isso? Sei lá, a gente às vezes faz loucuras e depois esquece delas.
Ps. Gustavo e Paulinho: devolvam meus livros, seus lalaus!
Mano: confesso que também fiz minhas gatunagens em tua biblioteca.

Anônimo disse...

Rapaz, ler o que você escreve é uma delícia! Valeu!

Anônimo disse...

Muito erudito. Parabéns. Mas como tem gente politicamente incorreta e insensível no mundo, me apeguei ao delathe do vôo de Borboleta.

Lá no Crato, se tu chegar dizendo que tá voando que nen Borboleta, vão dizer Samaroneeee viiiaadooo...

Anônimo disse...

Mai frescoooooooooooooooooooooo. O título deveria ser Confissões de uma menina-borboleta.
João Valadares

Anônimo disse...

Parabens pelo presente e pelos roubos. Roubava apenas chocolates na loja Americana e alguns livros de Marx na Livro 7.

Anônimo disse...

Menos, João, menos.
Pelo menos não faço prefácio de livro falando de crônicas que não foram selecionadas.
sama

Anônimo disse...

Olá Samarone!! Faz umas duas semanas que não visito o Estuário e hoje, vim matar as saudades! As crônicas estão ótimas! Grande abraço, Priscila

Anônimo disse...

confesso que quase roubei o livro do desassossego no carnaval...mas tudo bem, agora tem mais opções...rsrsrsrs.
beijos nego, adorei!!

Anônimo disse...

Ei Sama, nao sei se vais reler esta, mas ladrao que rouba ladrao tem cem anos de perdao... resta torcer para que os ladroes que te roubram tenham tido a boa ideia de abrir o livro...