segunda-feira, 19 de março de 2007

Anotações sobre dois vagabundos numa mansão do Lago Norte, em Brasília

De Taguatinga, DF.

Já fui a um templo de Umbanda, onde o caboclo me olhou e falou tudo sobre minha vida, já colocaram tarô e acertaram coisas sobre meu passado, presente e previsões para o futuro, já fui ao Parlamento das Religiões, um espaço imenso, para todos os credos. O Distrito Federal é um dos lugares mais espiritualizados do Brasil. Tirei uns dias para resolver umas coisas por aqui e encontrar amigos do coração, e a viagem enveredou pela sendas do misticismo. Saravá!

Ontem, fui convidado com meu amigo Gustavo para um sarau, numa das mansões do Lago Norte. A promessa era de um sarau-concerto com músicas do Astor Piazolla. Aceitamos de imediato, principalmente por conta do bandoneon do argentino.

Duas horas de carro, errando os caminhos, trocando quadras e setores, até que chegamos. O garagista, José Carlos, um sujeito negro de olhos baixos como os faróis de um Fusca 73, abriu o portão sem pressa. Ele tinha a lista dos convidados numa prancheta. Nossa amiga, que nos convidou, deu os nomes. O José Carlos perguntou se eu era Antônio Carlos, respondi que sim, entramos. Gustavo estacionou seu Ford K fechando a passagem para outros carros. Não vamos demorar, não vai atrapalhar ninguém, foi o que pensamos. Fizemos xixi no jardim mesmo.

O sarau era no primeiro piso da mansão. Já foram numa mansão? É mansão mesmo, amigos, com o "m" maiúsculo e uns três caseiros. Não cheguei a ver os cães e outros animais de toda mansão.

Quando chegamos lá, ao primeiro andar, descobri que éramos, disparado, o menor PIB da festa. Um menino tocava piano, acompanhado pela professora. Polkas, mazurkas, sonatas etc. Ele, o rapaz, tocava afetado. Aplausos frios, gelados, o que não é bom para um início de carreira.

Olhamos a vista. À frente, o famoso Lago Norte. Do outro lado, o Congresso Nacional. Fizemos logo amizade com os músicos que iriam tocar Piazolla, tão lisos quanto a gente. Músicos, vagabundos e poetas sempre se dão bem. Fizemos nosso boteco num canto mais afastado e ficamos reparando o movimento.

"É Krieg que ele está tocando", comentou Gustavo, se exibindo.

O violinista concordou. Se os dois estivessem mentindo, eu não saberia. Fiquei na minha.

Ao final de uma sonata, creio, veio uma mulher chateada.

"De quem é o Ford K, que está atrapalhado a saída do meu carro?"

"Mal cheguei, já estou atrapalhando", sussurrou Gustavo.

"Vai ter comida legal aqui", lembrou o camarada do violoncelo. "Tudo na vida tem seu preço, ja diz o Orson Wells", completou.

Não sei se foi Orson Wells ou Oscar Wilde, não anotei direito. Foi um deles, pode ter certeza. Se não foi, deve ter sido algum avô, quando a gente era pequeno.

Olho a casa. Está aqui, reunida, uma pequena parcela da elite do Distrito Federal. O lustre da casa é mais caro que meu orçameto para 2007. O mais pobre aqui vai para a Europa de mês em mês. A mesa está sendo entupida de comida. Tem vinho já dentro daqueles baldes de prata.

Eis que surge o personagem mais importante da noite, o garçom. Esbarra na mesa, quase acaba o concerto. Adoro garçom desastrado, contanto que não derube a sopa em cima de mim. Caramba, que papo de pobre esse negócio de sopa!

No intervalo, informam que está sendo servido um "pequeno lanche". Imaginem se fosse grande. Fartura total. Bacalhau era o prato mais barato. O guardanapo era chiquérrimo, dava medo até de pegar. O vinho surge com aquela cara boa, de vinho importado. Mais que isso, de graça. Pego uma taça, estendo para uma senhora, peço um gole.

"O copo de vinho não é esse, filho", diz ela, reconhecendo de longe um vagabundo.

"Mas não faz mal", respondo.

Ela me serve a contra-gosto.

Gustavo dá os parabés à professora de piano pelo concerto.

"Obrigada, mas a professora é minha irmã".

Não damos uma dentro.

O garçom reconhece os seus. Se aproxima com mais vinho. Chama-se Aristides, veio do Maranhão para Brasília em 1977. Falo que já morei em Imperatriz, também no Maranhão, ficamos amigos de infância, ele já vai no segundo casamento, "primeiro com uma potiguar, agora com uma mineira". Até o final da festa, não faltou nada para os vagabundos.

Voltamos para nosso boteco, na varanda. O amigo violinista vem com seu instrumento, pedimos para ele tocar "Carinhoso", ele manda ver. A noite vai ficando bonita, fazemos nossa festinha à parte, dá uma emoção danada escutar Carinhoso assim, no meio da frieza da festa. Pergunto se ele sabe tocar o hino do Santa Cruz no violino, mas ninguém é perfeito, fica para a próxima.

Nosso amigo do Violoncelo começa a segunda parte do sarau baixo-astral, acompanhando um pianista recem-chegado. O pianista explica o seguinte, antes de começar a tocar:

"O violoncelo, alegoricamente, é como se estivesse fazendo o Canto dos Cisnes, e o piano é a água".

Ele começa a tocar "O Lago dos Cisnes", creio, ou é o "Canto do Cisne Negro", do Villa-Lobos, estou ficado péssimo de memória. Aristides me oferece mais vinho. Desconfio que ele quer me embebedar. Uma senhora meio obesa passa com a tatuagem dos dois filhos nas costas, que dizem ser a última moda em Brasília.

"Estou levado meus filhos nas costas", diz.

Espero que não cobre a fatura depois.

É hora de escapar. Descubro que o José Carlos é filho de uma baiana com uma mineira.

Na volta para Taguatinga, Gustavo me explica que Brasíia e a cidade que tem mais árvores por habitante do Brasil. Acho que ele deixou o Xingu fora dessa.

Faz um vento bom, aquela brisa. Paramos num posto de gasolina, copramos duas cervejas e voltamos para casa, conversando besteiras e coisas da vida.

Para mim, a figura da noite foi o Aristides, que é de Bacabau.

Bacabau, para quem não sabe, fica perto de Santa Inês. Em Santa Inês eu fui muito, quando era pequeno, e morava em Imperatriz, no Maranhão. Agora me deu uma dúvida: será que visitei Bacabau e não lembro?

Aristides iria gostar de saber disso.


Para Pedro, recifense vagabundo e poeta, que está no Planalto Central disfarçado de jornalista.

9 comentários:

popfabi disse...

Tem feito mesmo umas noites lindas de brisa boa por aqui no cerrado. Não sei se tem tanta árvore assim, mas tem o maior número de piscinas por habitante do Brasil. Claro, os habitantes do lago ficam com todas, o pessoal das "satélites" vão pra água mineral. Bem vindo a terras candangas, amigo!

Anônimo disse...

SOBRE OS HORRORES DO POETA... OU Sobre a venda de ingressos para o show de Chico Buarque sobre a responsabilidade de S. André Branco da D&E Consultoria e Promoções de Eventos LTDA.

Bom gente a coisa ficou preta quando o Sr. Braco resolveu tratar como gado os amantes do poeta. Foram 12 horas de fila demonstrando um desrespeito memorável pela raça humana.
Socorro! Queremos Cidadania ao menos quando estamos tendo que pagar por algo...
Eu, feito outros, completamente sem acreditar no que viveu.

Anônimo disse...

Sama, estava com saudades de tuas trelas com Gustavo. Beijo. Magna

Anônimo disse...

achaste alguma reunião do Santo Daime por aí ? Traz um pouquinho desse chá pra repartir com a galera...

Daniela Peregrino e Fátima Borges disse...

De quem era a mansão Samarone?
Por acaso de algum político?

Samarone Lima disse...

Tentarei levar o Daime, Biu. Daniela, não vi nenhum político na casa. Tentarei fazer uma reportagem investigativa para desvendar o mistério.
Vou aqui, corrigir uns errinhos que só agora percebi.
Abraços,
Samarone

Anônimo disse...

Samarone ... teu blog é bem legal e me foi passado o endereço pela sua amiga e minha, a gabriela leite... convido-o então a conhecer o meu que é apenas uma brincadeira bem humorada e contundente pra cobrar a divida de um elemento politico que se diz importante e que vc bem conhece...hehe... abraço e sucesso

naire valadares disse...

Sama
Adorei a crônica,perfeita nos detalhes.
Quando vc chegar avisa para a gente marcar com as meninas e meninos para juntos assistirmos o filme da festa do Mago e Rita.
Beijo
Naire

Anônimo disse...

crônica divina e maravilhosa!